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O que aprendi com Roberto Carvalho

Ana Rita Fernandes

A tragédia de Mariana, ocorrida em 05 de novembro de 2015, marcou para sempre a história do Brasil, mudando o rumo ambiental e social de toda aquela região, impactando famílias, trabalhadores, fauna e flora.

Em dezembro de 2018, participei do bate-papo organizado pelo Auro Ruschel Advogados com Roberto Carvalho, C.E.O. da empresa Samarco à época da tragédia. Com muita sinceridade, humanidade e lucidez, ele compartilhou sua vivência, debatendo as responsabilidades e estratégias envolvidas na condução desse desafio impensável. É fundamental discutirmos as consequências do ocorrido, mas nesse evento surgiu um outro tema: os protocolos preventivos existentes na nossa legislação.

Como advogados de todas as áreas, nosso lema é a vigilância constante. Estamos sempre atentos às atividades de nossos clientes, à movimentação do judiciário, às leis, suas interpretações e mudanças. Mas será que nesse estudo diário que fazemos verificamos, com a frequência necessária, a adequabilidade da legislação existente frente às atividades que são efetivamente praticadas por aqueles que atendemos?

Como advogados corporativos, nos inserimos nas empresas que atendemos, procuramos compreender seus objetivos, interesses e dificuldades. Nessa vivência cotidiana em comum, aprendemos sobre os negócios praticados, procurando absorver o máximo de informação para melhor atender nossos clientes. Contudo, dada a diversidade do Direito, algumas áreas acabam se sobrepondo a outras, tornando assim pequenos ramos jurídicos invisíveis em nosso aprendizado e em nosso dia a dia. Foi isso que aprendi nos últimos três anos, quando me deparei com uma área até então quase invisível em toda a minha carreira como advogada corporativa: o Direito Regulatório.

A legislação inerente ao Direito Regulatório é interminável: são instruções normativas, resoluções, leis complementares, decretos… impossível estudar tudo e compreender tudo no curto período de faculdade. O regulatório nos é apresentado brevemente no âmbito acadêmico, mas aprofundar o conhecimento nessa área exige vivência e uma dedicação especial ao tema.

O principal objetivo da legislação de qualquer área é o mesmo: regulamentar aquilo que já é vivenciado pela sociedade cotidianamente e prever as diretrizes para situações que possam se apresentar futuramente no contexto das relações e atividades. A legislação evolui conforme a sociedade evolui, para que a lei sempre acompanhe aquilo que efetivamente é vivenciado pela população que deve observá-la. As relações comerciais e pessoais se transformam com o tempo? Surge um novo Código Civil. Surgem novas tecnologias de comunicação? Regulamenta-se o uso da internet através da lei. A criminalidade encontra caminhos até então desconhecidos? Definem-se novos crimes e novas penas. Logo, se essa evolução é concreta em tantas áreas, por que seria diferente com o Direito Regulatório?

Todas as atividades praticadas por empresas brasileiras são regulamentadas por legislação. Há protocolos de segurança, de conformidade, de medição, de extração de recursos, de construção de barragens… a lista é longa. Há também protocolos a serem seguidos em caso de acidentes de todo o tipo e proporção, mesmo para acidentes naturais incomuns no país. Mas como fica a revisão desses protocolos? Se uma ação não é executada por um longo período de tempo, será que sua normativa continua adequada quando chegar seu momento de necessidade? Estaria o Direito Regulatório acompanhando, com a velocidade adequada, a evolução da tecnologia e da metodologia empregadas pelas empresas?

O Direito Regulatório está muito atrelado à vida prática: comércio de produtos, processos fabris, etc. Mas há um fator muito importante que deve ser considerado na análise desse obscuro e gigante ramo do Direito: a prevenção. As diretrizes e protocolos estabelecidos na legislação regulatória trazem muitas medidas de segurança para todo o tipo de atividade. Porém, para que a prevenção se concretize, essas medidas precisam ser efetivas, reais. Faz toda a diferença ter uma normativa que preveja o método de medição de uma barreira de contenção, por exemplo, seguindo a forma atual de sua construção e utilização, pois de nada adiantará ter o protocolo se ele não acompanhar a mudança estrutural dessa barreira. A evolução tecnológica é constante, os processos produtivos e extrativistas são modificados continuamente, ensejando uma revisão também constante das normas que os regulam, além, é claro, de uma fiscalização eficaz e constante de todas essas atividades.

Assim, dentre as várias coisas que Roberto Carvalho teve a generosidade de me ensinar em nosso breve encontro, ficou a lição de que não basta garantir que nosso cliente esteja cumprindo a lei vigente. É preciso também a vigilância constante das normas que o orientamos a seguir, para assegurar a efetividade e a atualidade da letra da lei. Para isso, faz-se necessária a união entre o conhecimento jurídico e o conhecimento técnico, pois um advogado poderá não entender toda a complexidade e tecnicidade do negócio de seu cliente, assim como o cliente poderá não entender toda a complexidade e extensão das normas jurídicas. O diálogo constante entre o advogado e a empresa permitirá a complementação necessária para compreendermos se a diretriz legal é ou não suficiente para acompanhar a realidade, trazendo segurança efetiva a todos.

Quando participei desse evento e comecei a refletir sobre esse assunto específico, não imaginava que dentro de tão pouco tempo veria a história se repetir. Apesar da desolação que todas as notícias nos trazem diariamente desde 25 de janeiro, quando uma das barragens da Vale do Rio Doce se rompeu, gerando uma onda de lama e destruição em Brumadinho/MG, entendi que esse é o momento de falar em prevenção. Há muito o que ser feito para conter os danos, buscar os responsáveis, salvar as vítimas, mas precisamos pensar também em uma forma de quebrar o ciclo danoso que está se formando diante de nossos olhos. Como comunidade jurídica, nosso dever não é apenas agir diante do erro, mas também estudar, dialogar e agir, antecipadamente, para que os erros não se repitam.

Não há mecanismos para amenizar a devastação de uma tragédia como essa que estamos vivendo. Contudo, após o saneamento das consequências passíveis de reparação, nos cabe a principal ação diante de algo tão terrível quanto um mar de lama irrefreável: envidar todos os esforços para que jamais aconteça de novo.